Direitos humanos e trabalho doméstico remunerado sob o Lockdown: hora de rever o Decreto Estadual

Felipe de Holanda (DECON-UFMA)

Segunda-feira de manhã, em casa é dia de faxina geral, nestes tempos de Lockdown. Começo  varrendo o apartamento todo, depois, pano de chão com  desinfetante, e lavagem extra e limpeza pesada nos banheiros. Aproveito para recolher do pequeno varal portátil, as roupas brancas, a serem dobradas e guardadas, depois de uma estirada rápida, nos armários. É que nem uma pandemia global, dá jeito na minha inaptidão para passar roupas. Estou suado, passa do meio dia, e ainda tenho que lavar a louça do café da manhã e preparar o almoço e o jantar. Penso nela, na Dona Jacy, que vinha aqui em casa 2 vezes por semana, com seu impecável profissionalismo, e deixava a casa e as roupas impecáveis. O conforto que ela me proporcionava, valorizo cada vez mais, à medida que vou aprendendo a realizar (nem sempre com sucesso) as complicadas e repetitivas tarefas.

Enquanto preparava a casa para a semana, de modo a receber minha filha, de quatro anos, que passa 3 dias de cada semana comigo, assistia a uma entrevista na Agência Tambor, com Maria Isabel Castro Costa, articulada ativista do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos no Maranhão (Sindoméstico-MA). Comentava ela, que o Decreto 35.784/2020, do Governo do Maranhão, publicado em 3/05, que regulamenta o Lockdown, em sua alínea J, inclui o serviço doméstico como atividade essencial.

Dona Maria Izabel, que trabalhou 30 anos de sua vida como empregada doméstica, aponta que há inúmeras denúncias de que, sob a ameaça de demissão imediata, muitas trabalhadoras seguem deslocando-se diariamente até a casa dos patrões, onde via de regra, não recebem EPI´s e ambiente saudável para trabalhar. No deslocamento ao trabalho e na volta à residência, em coletivos muitas vezes cheios, transformam-se em novas vítimas ou em transmissoras da doença. Algumas patroas, conscientes do risco, apresentam a escolha entre passar a morar em suas casas, ou demissão sumária.

Pior é a situação das diaristas, que deixaram de receber qualquer pagamento de muitos ou todos os clientes. Dona Jacy, mãe de 2 filhos, beneficiária do Programa Bolsa Família, bancarizada e esclarecida, apenas recebeu a 1ª parcela do auxílio emergencial no dia 3 de maio. Há muitas que não estão cadastradas para receber o benefício. Os dados da PNADc mostram que no final de 2019, registravam-se no maranhão cerca de 160 mil trabalhadores domésticos (em sua imensa maioria, mulheres). Destes, apenas cerca de 20 mil (12,7%) tinham carteira assinada.

Agora que a fome apertou, vou finalizar este texto para fazer o almoço. Depois, louça e tirar pó das estantes. Ah, que falta que Dona Jacy me faz! Ela está em casa, em Cidade Verde, no Paço do Lumiar, onde os casos de COVID-19 começam a se multiplicar, agora que já se atingiu, na Ilha o limite de capacidade do sistema hospitalar para os casos graves. Acabo de fazer, como em todas as semanas, desde que começou o isolamento a transferência de sua diária. Para que ela permaneça em sua casa. Sem contrapartida no futuro. Já que eu continuo recebendo (e trabalhando remotamente) na Universidade Federal do Maranhão.

Dona Maria Isabel falou da invisibilidade do sofrimento desta camada de trabalhadoras. Narrou-nos, ela, das formas sofisticadas de escravidão, incrustradas na falta de limites com os quais muitas destas trabalhadoras são exploradas, invisivelmente, em condomínios e residências de luxo, aqui mesmo em São Luís. Como professor de universidade pública, não raro escuto o relato de que tal ou qual família de um aluno ou aluna, “cria” uma “menina vinda do interior”, de família pobre, “dando-lhe chance de estudar”, sempre (ou quase nunca), é claro, quando as múltiplas e diuturnas tarefas domésticas assim o permitam. Quantas “Cinderelazinhas”, ainda hoje, separando as ervilhas das cinzas, na Ilha do Maranhão?

Hora de realizarmos uma séria reflexão, sobre como estão sendo atingidas pelo COVID-19 as famílias dessas trabalhadoras com quem, nos tempos normais, tantos de nós se apoiam e dividem a intimidade familiar. E que consideramos imprescindíveis, para realizar as nossas tarefas profissionais, assim como também aproveitar dos privilégios e oportunidades que a cidade oferece. Precisamos pensar nelas, em suas famílias, na carência de recursos e meios, nos lugares em que a maioria vive. Hora do Governo do Maranhão, que coloca os Direitos Humanos como princípio mobilizador de suas ações, rever o artigo J de seu Decreto do Lockdown, e adotar políticas específicas de amparo a esta categoria.

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