Hayek: o que o austríaco referenciado em recente decisão do STF e amplamente citado pelo ministro da economia pensa sobre o ativismo judicial
Por Tamara Dall Agnol[1]
A Constituição Federal brasileira de 1988 adveio como fruto de um período de redemocratização, após anos de regime militar, momento histórico – como alguns outros ocorridos no Brasil – marcado com patente supressão dos direitos individuais.
A nova ordem inaugurou um sistema o qual toda lei deve ser interpretada conforme a Constituição, ocorrendo um diálogo entre as fontes jurídicas, conforme o entendimento predominante. Em convergência à nova era, emergiram microssistemas com temática, lei e doutrina própria, acompanhando a tendência de descodificação. Nessa esteira, o legislador preocupou-se em consolidar no texto normativo um grande número de normas abertas, com o fim de proporcionar determinada margem de liberdade à atividade hermenêutica do Estado-Juiz, apta a dar completude ao ordenamento e mantê-lo atualizado, de modo a fornecer respostas adequadas aos casos concretos sob sua apreciação.
Sucede que os princípios, tais quais a “dignidade da pessoa humana”, cláusulas gerais como a “boa-fé objetiva”, a “função social” do contrato ou da propriedade e os conceitos jurídicos indeterminados, passaram a ser os responsáveis por recorrentes decisões imparciais, arbitrárias e, consequentemente, causadoras de insegurança à economia, bem como à sociedade como um todo.
Sobre o ato de decidir, principal atividade dos magistrados, o expoente da Escola Austríaca e ganhador do prêmio Nobel de Economia, Friedrich Hayek, assevera em 1973 que esse é “um trabalho intelectual e não uma tarefa em que suas preferências emocionais ou pessoais, sua compaixão pela dificuldade de um dos litigantes, ou sua opinião sobre a importância do objetivo particular possam influenciar a decisão”[2]. Sendo esse contexto de decisionismo bastante observado ultimamente no país, haja vista a ocorrência de uma série de preconceitos, máximas de experiência, estereótipos fundados em generalizações grosseiras, sem base alguma cognitiva residindo as fundamentações de relevantes questões que chegam ao Poder Judiciário.
O que é pior, como alerta a professora Judith Martins Costa, mencionada “incorreção não deriva apenas da imperícia técnica ou da irresponsabilidade: pode nascer de um desvio ideológico”[3]. E para exemplificar o perigo dessa situação, a autora cita a Alemanha Nazista, que com base em cláusulas gerais executou cruéis perseguições, indo de encontro aos valores individuais, exaltando os valores comunitários, sem nem mesmo precisar mudar o texto da lei.
Ou seja, o problema não é a característica abstrata das leis, mas ao que tudo indica, os próprios intérpretes. Recorda-se que para Hayek, como coloca Henry Maksoud na apresentação do primeiro volume de “Direito, Legislação e Liberdade”,
somente são normas de direito, ou seja, leis de verdade, as normas de conduta justa individual que possuam os atributos de serem gerais, iguais para todos e prospectivas, além de serem conhecidas e certas. São normas abstratas, essencialmente permanentes, que se referem a casos ainda desconhecidos e não contêm referências a pessoas, lugares ou objetos determinados, mas que regulam as relações de conduta entre pessoas privadas ou entre essas pessoas e o Estado[4].
Este entendimento, portanto, revela o apoio do economista às normas abstratas, ainda que, após muito ter vivenciado o sistema consuetudinário, tenha reconhecido que, em tese, a legislação – no sentido da concreção específica – possa tornar o direito mais confiável, por impossibilitar a criação judicial quando da aplicação da norma. Prova dessa anterior suspeita está na sua magnum opus “O Caminho da Servidão”, de 1944, porquanto afirma que à “medida que o planejamento se torna cada vez mais amplo, faz-se necessário abrandar na mesma proporção as disposições legais, mediante referência ao que é ‘justo’ ou ‘razoável’: isto significa que é preciso cada vez mais deixar a decisão do caso concreto ao poder discricionário do juiz ou da autoridade competente”[5].
Superado esse posicionamento, Hayek, talvez percebendo as injustiças que podem decorrer de uma interpretação exegética combinada com um ordenamento jurídico imóvel, coloca que “as decisões judiciais podem de fato ser mais previsíveis quando o juiz estiver também limitado pelas concepções consensuais acerca do que é justo, mesmo quando estas não se apoiem na letra da lei, do que quando ele se limita a basear suas decisões somente nas convicções já expressas na lei escrita”[6].
O austríaco acredita que quando o juiz assim atua não está legislando, criando uma nova ordem, mas sendo “um servidor’ empenhado em manter e aperfeiçoar o funcionamento de uma ordem existente”[7]. Por outro lado, preocupa-se com o extrapolar da atividade judiciária, quando essa se afasta das já mencionadas “concepções consensuais acerca do que é justo”, o que atesta já ter em vista, desde sua época, o problema do ativismo judicial.
Desse modo, entende que apenas haverá liberdade quando a imparcialidade dos julgadores estiver presente, bem como a preponderância da Lei – prezando a não agressão à vida, à liberdade e à propriedade – se fizer ajustada às decisões. Embora não exista indivíduo neutro, militância jamais é exercício intrínseco ao papel do juiz, que se com ela preferir se alinhar, poderá deixar seu cargo para atrelar-se à tal vocação.
Ante o exposto, verifica-se a sacralidade da segurança jurídica para o filósofo político, vez que “o importante é saber se o indivíduo pode prever a ação do estado e utilizar esse conhecimento como um dado na elaboração de seus planos particulares […] ou se o estado está em condições de frustrar os esforços individuais”[8], devendo, sem dúvidas, primar-se pela primeira opção, compreendida na previsibilidade das regras do jogo e na utilização das normas abstratas de maneira coerente, só assim viabilizando o caminho da prosperidade.
REFERÊNCIAS
HAYEK, Friedrich A. Direito, Legislação e Liberdade: Normas e Ordem. vol. 1. 1973.
HAYEK, Friedrich A. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
MARTINS-COSTA, Judith. Cláusulas Gerais: Um Ensaio de Qualificação. In: FONTOURA COSTA, José Augusto; ANDRADE, José Maria Arruda de; MATSUO, Alexandra Mert Hansen (Orgs.). Direito: Teoria e Experiência: Estudos em Homenagem a Eros Grau. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, v. 1.
[1] Advogada inscrita na OAB-MA sob o nº 14.454. Especialista em Direito Civil pela UNIDERP (MS). Aluna regular do programa de Doutorado em Direito da UBA (Universidad de Buenos Aires). Pós-graduanda em Escola Austríaca de Economia pelo Instituto Mises Brasil. Mestranda em Direito na UFMA. Endereço eletrônico: [email protected].
Excelente ponto de vista!!