Por leis de letras vivas
Por Natalino Salgado Filho
Quando nosso conterrâneo Aluísio Azevedo escreveu sua magistral obra O Mulato, sua pena serviu de arma para denunciar uma das piores feridas ainda abertas da história brasileira: a exclusão racial, causada por séculos de um escravismo aterrorizante, a qual ainda teima, em pleno século XXI, em manifestar-se por meio da falta de oportunidade e da discriminação.
Invoco a memória do escritor e de seu discurso a propósito da seguinte efeméride: no último dia 29 de agosto, comemorou-se uma década da lei de cotas, n o 12.711 de 2012, que provocou uma verdadeira revolução no sistema educacional brasileiro. Essa lei veio para atender à Carta Maior que determina, em seu artigo 205, que a educação é um direito de todos e dever do Estado. Sem distinção.
Quando da promulgação da Constituição Cidadã, um desafio enorme foi proposto: tornar prático esse princípio em um país marcado por tantas desigualdades, por séculos de exclusão e exploração da população negra e indígena. Uma dessas respostas veio justamente por meio da lei de cotas, destinada a proporcionar oportunidade de acesso ao Ensino Superior quando estabeleceu a reserva de metade das vagas nas universidades e institutos federais não apenas para os que estudaram em escolas públicas, mas também como reserva para negros, indígenas, pessoas com deficiência e de baixa renda. Faço coro à Conceição Evaristo, porque desejo também que esses jovens se apropriem do que o estado brasileiro deve oferecer a eles, porque não é prêmio, é direito.
Mas, antes desse marco legal, muitas instituições já estavam adotando práticas de inclusão como reparação da injustiça educacional. Invoco o caso específico da Universidade Federal do Maranhão. O ano era 2008. Àquela ocasião, apenas 23 das 59 universidades federais dispunham de modalidades próprias de ações afirmativas com recorte social/racial. Iniciamos um enfrentamento contra a desigualdade educacional, tomando a necessária posição no decorrer do tempo que parece abrir nosso entendimento diante da realidade antes não vista.
Os dados eram desafiadores: naquele ano, em específico, a população branca representava 60% dos estudantes das universidades públicas e 66,2% das instituições particulares. A Política de Cotas que implementamos, com amplo apoio da comunidade acadêmica, por meio de Resolução editada pelo Conselho Universitário, estabeleceu 50% das vagas para a categoria universal e 50% para a de cotas. A categoria cotas estava subdividida em 25% para quem se declarasse negro (preto ou pardo) e 25% para quem tivesse estudado nos três últimos anos em escola pública (federal, estadual ou municipal). Dentro da categoria “cotas” estavam ofertadas duas vagas por cada curso: uma vaga para portador de deficiências físicas, visuais, auditivas, mentais e múltiplas; e, a outra, para quem se autodeclarasse indígena.
Saímos na frente, dispostos a tornar o abstrato da letra constitucional em concretude diária. Concomitantemente, a partir da adesão da UFMA ao programa governamental de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), instituído no ano de 2007, vivenciamos uma expressiva ampliação do número de vagas no ensino superior. Ao aderir ao programa, apresentamos a proposta de ampliação de novos campi e consequentemente das políticas de inclusão e de assistência estudantil com vistas à maior democratização do acesso e da permanência dos estudantes no ensino superior. Saímos de 04 campi e 54 cursos para 09 campis e 100 cursos em 2022, criados de forma inovadora, tendo sido estabelecidos polos em regiões mais próximas das terras indígenas e dos territórios quilombolas localizados no estado.
Com a criação do Sistema de Seleção Unificada (SiSU) pelo Ministério da Educação em 2010, outra revolução: a diminuição do custo financeiro do processo de seleção para a universidade. Os estudantes do continente não precisariam se deslocar para fazer provas. Em 2015, instituímos o primeiro curso – único no Brasil – de graduação em Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, como forma de proporcionar capacitação na rica diversidade da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, na formação dos profissionais da educação básica.
Os números não tardaram em mostrar a alteração no quadro com que nos deparamos inicialmente, ainda que de forma lenta e gradual. De acordo com o censo da educação superior de 2018 (INEP, 2018), do total de matrículas realizadas na educação superior no país na ocupação por cor, 42% são de brancos e 36% de negros. Olhando apenas a configuração na região Nordeste, a partir das matrículas, por exemplo, deparamos com um índice de 21% de brancos e 52% de negros matriculados, e, no contexto do Maranhão, esse índice de matrícula é de 21% de brancos e 58% de negros. Há que ressaltar que, em termos da representação total da população por esses dois grupos de cor, na região Nordeste temos: 24,6% de brancos e 74,5% de negros, enquanto que no estado do Maranhão são 21,9% de brancos e 79,7% de pretos; amarelos, 1,1% e a população indígena é de 0.5%.
Levando em conta esses mesmos dados disponibilizados no ano de 2018, referentes à taxa de representatividade de negros, no Ensino Superior ela está acima da média da população negra no país, uma vez que, na UFMA, os 20.776 estudantes negros matriculados representavam 52,8% dessa representatividade. Dados mais recentes relativos a 2020 (primeiro e segundo semestres) revelam que tivemos o ingresso de 1.811 alunos no sistema de cotas, inclusos negros, deficientes, oriundos de escolas públicas e indígenas.
Os jornais, ao registrarem uma década da lei de cotas, dão conta de que o número de alunos negros cresceu em torno de 400% e já representam mais de 38% dos estudantes, ainda que 56% da população brasileira seja declarada preta. Podemos ainda avançar mais: existem atualmente, de acordo com a ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros), uma média de 67 projetos de lei que trazem dispositivos para aperfeiçoar a inclusão, uma vez que, no artigo 7º da Lei, está prevista a revisão do programa, após dez anos de funcionamento.
Aluísio Azevedo em O Mulato diz: “Ah! mas um dia, esse governo que não teve inteligência de seus deveres pagará bem caro a vergonhosa incúria”. E diz mais: “Vê o senhor ?! — não é por mim! mas é pela sociedade! É pelos descendentes!
Ainda que muito precisemos fazer a título de reparação, creio que estamos, pelo menos no quesito educacional, iniciando passos que não possam retroceder, até que alcancemos a estatura de um país cujas leis sejam escritas com letras vivas, para restaurar as páginas de nossa história.
Natalino Salgado Filho é reitor da Universidade Federal do Maranhão