O Brasil livre de malária: realidade ou utopia?

Antonio Rafael da Silva e Eloisa da Graça do Rosário Gonçalves – Professores Doutores da UFMA

A malária humana é uma doença de epidemiologia caprichosa. Os que a estudam não desconhecem que os elos de sua transmissão – a fonte de infecção (pessoa acometida de malária), o transmissor (várias espécies de mosquitos) e o suscetível (pessoa sadia) – convivem no mesmo ambiente sócio-geográfico. Assim, anunciá-la caprichosa é compará-la ao temerário fogo: qualquer descuido, um incêndio; e sempre um desastre social e humano.

Esses dizeres foram enunciados pelo autor deste artigo no início da década de 1990 quando a malária começou a agigantar-se no Brasil. Àquela época, o Estado do Maranhão vislumbrando o perigo, trabalhava numa proposta para inserir o “Controle da Malária Baseada na sua Inserção no Sistema Único de Saúde (SUS)”. Mas o Ministério da Saúde, por sua vez, olvidou os apelos do Maranhão. Resultado: nesta mesma década, a malária aumentou assustadoramente e já no ano 2000, o Estado apresentou mais de 78 mil dos 657 mil casos da doença registrados no Brasil.

Para deter o crescimento exponencial da malária foi criado, em 2000, o Programa de Intensificação das Ações de Controle da Malária (PIACM), que funcionou até o ano de 2002. Essa intervenção bem orientada fez diminuir a malária em cerca de 43,2%, quando foi substituída em 2003 pelo Programa Nacional de Controle da Malária (PNCM). A partir de 2016, o Ministério da Saúde, seguindo recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), em parceria com o programa Roll Back Malária, adotou a meta “Por um Mundo Livre de Malária”, a ser cumprida entre 2016 e 2030.

Lanço mão dos números para demonstrar o que aconteceu com a malária no Maranhão e no Brasil, sob o domínio do PNCM e o que está acontecendo com a malária após o lançamento pelo Ministério da Saúde, em novembro de 2015, em Brasília, do programa “Ação e Investimento para vencer a malária 2016-2030”. Lembrar que esse programa brasileiro foi elaborado em duas fases. A primeira consistia na eliminação da malária falciparum até 2025 e a segunda, na eliminação total da malária até 2030, seguindo-se da fase de manutenção.

Como efeito da transição do PIACM para o PNCM, os números oscilaram em patamares ainda elevados nos 5 primeiros anos (alcançando em 2005 mais de 600 mil casos), para em seguida começar a decrescer (em 2010 registrou cerca de 330 mil casos). Comparando esse último dado com o encontrado em 2015 (142 mil casos), a malária teve redução sustentável de 57%. Tal redução coincide com a proposta lançada nesse ano.

Considerando a evolução da malária no Maranhão – que em 2000 registrou 78 mil casos, e comparando com o registrado em 2015, constata-se uma redução de 99,3%. Aqui, chamam a atenção dois fatos. Primeiro: que o estado do Maranhão apresentou o maior índice de redução da malária no período. E segundo: que nos nove Estados da Amazônia Legal (da qual o Maranhão faz parte), responsáveis por 99% da malária no Brasil, houve redução da malária em oito, com exceção apenas do Estado do Acre que teve aumento de 14%.

A malária no Brasil tem como causa duas espécies de protozoários: Plasmodium vivax, responsável por mais de 80% dos casos e o Plasmodium falciparum, responsável pela malária grave. Descuido na vigilância, retardo no diagnóstico e no tratamento trazem duas grandes consequências: a disseminação da infecção e o risco de agravamento.
Em nosso país, a partir do programa de eliminação, a malária apresentou os seguintes resultados. Comparando-se os dados de 2016 e os atuais de 2021, constata-se que a malária cresceu 7,8% no total de registro de casos. Em relação à malária pelo Plasmodium falciparum, alvo de eliminação na fase I, o crescimento no mesmo período foi de 41,3% (crescimento médio anual de 12,8%). Imagino que os que leem este artigo devem estar se perguntando se a malária não deveria estar diminuindo ou como evoluiu nos anos intermediários entre 2016 e 2021. Bom, vemos que os números evoluíram como os dentes de um serrote, subindo e descendo, com o maior número 193.717 (em 2017) e o menor 138.771 (em 2021).

Pelo apresentado até aqui, os resultados da política de eliminação não foram nada animadores. Como o Brasil gosta de improviso, o Ministério da Saúde, em vez de chamar a experiência dos que vivenciam essas nosologias (o sucesso obtido pelos estados do Maranhão, Tocantins e Mato Grosso é um exemplo), colocar seus técnicos para avaliar o que está acontecendo em alguns municípios dos seis estados amazônicos onde persistem a transmissão (Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima) ou procurar verificar se na prática estão sendo empregadas as medidas consideradas eficazes para o controle da doença, lançou neste 11 de maio, em Brasília, um “novo” Plano Nacional de Eliminação da Malária.

Esse plano de eliminação é o mesmo de 2016, apenas com enfeite de alguns números. Dividiram a eliminação em 4 fases: reduzir o número de casos até 2025 e zerar até 2030 a letalidade por malária (no plano anterior zerar a transmissão pelo Plasmodium falciparum, o plasmódio que mata, era até 2025); manter o país sem óbito e sem transmissão de malária falciparum a partir de 2030; eliminar a malária até 2035; prevenir a reintrodução da transmissão, ou seja, manter o Brasil livre de malária.

A malária é uma endemia muito sensível aos planejamentos e às execuções bem-feitas. O local e a moradia das pessoas são expressivos fatores de risco para a doença. Nos últimos anos nos garimpos, nas áreas indígenas e nos assentamentos, a malária tem se expandido, sem falar da transmissão existente em áreas rurais e nas periferias de áreas urbanas.

Um plano de eliminação que representa a última etapa de um controle bem sucedido, lançado contra uma doença que é sensível à expansão de garimpos e à degradação do meio ambiente, ao uso racional da terra, ao desmatamento, ao abandono da saúde indígena e à redução do teto de gastos que impactam a política do Sistema Único de Saúde, somente pode ser uma utopia.

O plano de eliminação de 2016 foi lançado numa outra realidade, onde ainda não havia ameaças do tipo das que acontecem atualmente.

Mas pelo Brasil, pelo Mundo e por suas populações expostas ao risco, vamos trabalhar, esperar, acompanhar, torcendo para que o Plano Nacional de Eliminação da Malária dê certo.

Antonio Rafael da Silva e Eloisa da Graça do Rosário Gonçalves
Professores Doutores da UFMA

2 thoughts on “O Brasil livre de malária: realidade ou utopia?

  1. Lendo todo o texto com análise perfeito. Coloco um bom exemplo, o nosso Município de São Luís que há muitos anos temos feito um esforço imenso para eliminar a malária. Estamos na melhor fase: 8 anos sem registro de casos autóctones. Mas hoje quando vejo o ministério da Saúde lançar o projeto de eliminação da MALÁRIA no Brasil, quando os bravos guerreiros de ao longo dos anos já quase não estão existindo, sem capacitação de novos, sem estrutura para melhorar as condições de trabalho, corremos o risco de nova introdução da malária, não apenas em São Luís, mas em todo o Estado do Maranhão.

  2. Com muita propriedade e conhecimento, sobre a Malária no Brasil, o professor Antonio Rafael da Silva juntamente com sua parceira de trabalho, professora Eloisa da Graça, mostram com muita competência uma realidade de como é tratada a Saúde Pública no Brasil, e principalmente quando trata-se de doenças consideradas de pobres ou menos favorecidos;
    Parabéns professor pelo testo, e por todo trabalho desenvolvido ao longo de tantos anos

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