COVID-19: como financiar uma Economia de Guerra

Por Ricardo Zimbrão Affonso de Paula* e Alex Brito**

Em artigo publicado neste espaço, no dia 22/03/2020, fizemos uma análise de como a pandemia COVID-19, que está assolando a humanidade, impactou negativamente a economia. Chegamos à conclusão de que para dirimir os efeitos socioeconômicos perversos da crise sanitária, o governo deveria adotar uma economia de guerra e manter a função consumo da demanda agregada parcialmente funcionando para garantir a ordem social.

De início, mostramos “o que fazer”. Todavia, não ficou claro o “como fazer”. Isto é, a capacidade implementar a estratégia de maneira célere e eficiente. Dessa forma, há um problema que se deve enfrentar logo de início, qual seja, a chamada restrição fiscal e financeira do Estado. Contudo, é importante deixar claro que a excepcionalidade do momento em que vivemos e a urgência de decisões de natureza estrutural exigem que se abandone os protocolos convencionais da política econômica vigente e se passe a perguntar de onde vem o dinheiro.

O primeiro aspecto que precisamos informar à população, e que não é tão claro e

nem tão óbvio, é que o financiamento de crises dessa envergadura nunca foi feito a partir do dinheiro do contribuinte (o funding nunca foi a arrecadação). O governo, numa linguagem rasteira, simplesmente emitiu dinheiro. Ao contrário do que se propaga, o Estado não padece de restrição fiscal e nem financeira, porque, diferente das famílias e empresas que precisam ter dinheiro para gastar. O Estado não precisa ter dinheiro prévio, tampouco taxar a sociedade para financiar seu gasto, o governo gera a renda que gasta!

O maior exemplo disso é a chamada Conta Única do Tesouro (conta em que são depositadas todas as disponibilidades financeiras da União) mantida pelo Banco Central e que é alavancada principalmente pela variação cambial (quanto maior a desvalorização do câmbio, maior o saldo da conta. Você sabia disso?). Bom, ao final de 2001 o saldo dessa conta representava 6,1% do PIB, em dezembro de 2009, logo após a grande crise financeira internacional, esse saldo representava 12,2% do PIB; no auge da recessão recente em 2016, o saldo correspondia a 16,6% e no início de 2020 a disponibilidade financeira da União representa cerca de 18,6% do PIB! Em termos monetários o saldo dessa conta sai de algo em torno de 800 bilhões de reais no final de 2015 e chega a 1,3 trilhão de reais em janeiro de 2020.

O fato é que, desde 2001 e, apesar da crise internacional e da desaceleração da economia brasileira (a partir de 2014), o saldo dessa conta cresce exponencialmente! Para se ter uma breve ideia do valor que estamos falando, poderíamos, com apenas 1/3 do valor dessa conta (algo em torno de R$ 450 bilhões) atacar três eixos importantes nessa crise: a assistência aos mais vulneráveis, o fortalecimento do sistema de saúde públicoe a mitigação dos impactos financeiros sobre as micro e pequenas empresas.

Com esse montante, seria possível duplicar, emergencialmente, a cobertura dos benefícios pagos pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) e triplicar o valor do Bolsa Família, mantendo-os integralmente por seis meses! Isso custaria cerca de 1,4% do PIB ou aproximadamente R$ 105 bilhões. Poderíamos ainda, com o restante do saldo, dobrar o gasto com saúde pública, que atualmente é cerca de 3,8% do PIB (algo em torno de R$ 285 bilhões) e ainda injetar R$ 60 bilhões para garantir a folha de pagamento e o capital de giro das empresas (atualmente, o pacote criado pelo Ministério da Economia e o Banco Central prevê R$ 40 bilhões para esse tipo de despesa). Tudo isso com apenas 1/3 das disponibilidades da Conta Única do Tesouro.

Mas, por que não se faz? A resposta é porque no Brasil, o regime fiscal foi constitucionalizado. A chamada “regra de ouro”, disciplinada pelos dispositivos legais do artigo 167, inciso III da Constituição Federal, do artigo 2, § 3º, da Lei Complementar nº 101 de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e do artigo 6º da Resolução do Senado Federal de 2007, e mais recentemente pelo “teto dos gastos públicos”, propugnado pela a EC 95/16 (que estabelece um teto de 20 anos para os gastos públicos, que não podem exceder à inflação do ano anterior), impõemuma restrição jurídica à condução da política fiscal.

Bom, mas de maneira conservadora falamos em usar R$ 450 bilhões da Conta Única. O governo, contudo, sinalizou no final dessa semana, um pacote que prevê R$ 750 bilhões (cerca de 10% do PIB). De fato, o valor é impressionante, muito semelhante (em % do PIB) ao investido pelos EUA, apesar de países como Alemanha e Espanha, estarem aportando algo em torno de 20 a 22% do PIB, mas é maior que o aporte inicial de países como a França e Portugal. Contudo, é importante ressaltar que parte dos valores desse pacote não é dinheiro novo, mas adiantamentos e realocações de recursos (corte de recursos de um lugar para remanejamento em outro) já previstos no orçamento, o que reduz os impactos potenciais sobre o nível de demanda efetiva da economia.

Em circunstâncias excepcionais, como a que estamos atravessando, é necessário injetar “dinheiro novo”, flexibilizar o regime fiscal, desobstruir as restrições jurídicas ao gasto e aportar recursos vultosos, isso por uma razão muito simples: apenas medidas estruturais, como essas, poderão mitigar os efeitos sobre a demanda efetiva, e porque não se combate crises com receita de tributos!

Está claro que o modo como financiar a economia de guerra não se esgota aqui. Há outros fatores que contribuem para se entender a capacidade de financiamento, quais sejam: a dívida pública, o crédito, a emissão de moeda, os subsídios e a reconversão industrial. A experiência histórica nos dá os elementos necessários para enfrentarmos essa crise. Nós gostaríamos de continuar dividindo esses conhecimentos com a sociedade. É o que pretendemos fazer daqui por diante.

*Doutor em Economia. Professor Associado do Departamento de Economia e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioeconômico da UFMA.

([email protected])

** Doutor em Desenvolvimento. Professor Adjunto do Departamento de Economia e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioeconômico da UFMA.

([email protected])

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