Brasil ainda carece de regulamentação para estimular os dispute boards

A advogada Lívia Moraes, especialista em arbitragem com experiência nas cortes internacionais, explica nesta entrevista o funcionamento dos dispute boards e a necessidade de regulamentação para seu funcionamento no Brasil.

Qual a importância da regulamentação dos dispute boards no Brasil, e qual a perspectiva de ela ocorrer nos próximos anos?

Lívia Moraes – O Brasil vive, há algum tempo, uma defasagem em sua infraestrutura. Além disso, ainda reside, em nosso ordenamento, grande resquício da Administração Pública burocrática, sobretudo em se tratando de vultosos contratos administrativos para a execução de obras de infraestrutura. A solução para tal problema pode ser encontrada em exemplos de sucesso de outros países. Nesse contexto, verifica-se a existência de um modelo alternativo de resolução de conflitos chamado Dispute Board (DB).

Inicialmente, é preciso destacar que, como método extrajudicial de resolução de conflitos, os dispute boards consistem em um comitê formado por profissionais especialistas em matérias técnicas e diversas que, em conjunto, são nomeados para acompanhar o desenvolvimento de um contrato, cuja execução se estenda no tempo, desde o seu início, e analisar as possíveis e eventuais controvérsias técnicas que possam surgir durante a relação.

Em verdade, existem regulamentações privadas de Dispute Boards, sendo, em sua grande maioria, por grandes câmaras arbitrais, tais como: CCBC, CCI, CBMA, entre outras.

A única regulamentação sobre o assunto existe no Estado de São Paulo.

Desse modo, é extremamente importante pensar em regulamentar esse tipo de método extrajudicial de resolução de conflitos, para que não seja arguida a sua incompetência em algum momento processual, se não previsto pelo sistema jurídico nacional.

O que precisa constar num contrato para que o uso de dispute boards possa ocorrer?

Lívia Moraes – Os contratos privados celebrados sob a sistemática do ordenamento jurídico brasileiro possuem como princípio fundamental a liberdade de contratação – ou a autonomia da vontade –, cuja normatização encontra-se no artigo 425 do Código Civil Brasileiro. Esse princípio fundamental do direito contratual se alicerça exatamente na ampla liberdade contratual, no poder dos contratantes de disciplinar os seus interesses mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica.

É esse princípio que permite às partes contratantes adotar cláusulas contratuais e modelos de contratos que mais atendam aos interesses de seus negócios (respeitando-se, sempre, a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva). É com fundamento nessa autonomia que cláusulas compromissórias são inseridas.

Esse princípio se verifica, primordialmente, quando se fala em arbitragem, pois as partes precisam respeitar o pactuado e utilizar o método para dirimir os conflitos oriundos daquela relação jurídica.

Quando falamos em Dispute Boards, é de extrema importância destacar que eles seguem a lei contratual que os originou, isto é, são regulados do início ao fim do procedimento pela vontade das partes manifestada na elaboração das cláusulas contratuais. Por essa razão, as partes podem definir, a seu critério, as regras procedimentais que irão reger esse mecanismo, sempre, porém, respeitados os princípios da ordem jurídica contratual brasileira: a boa-fé objetiva, a função social do contrato, a liberdade de contratar, a força obrigatória dos contratos, a revisão dos contratos em situações excepcionais, entre outros.

Com isso, a aplicabilidade dos dispute boards no Brasil não se apresenta de forma muito diferente da aplicabilidade da arbitragem aos contratos privados, já que ambos se originam da autonomia da vontade de partes contratantes capazes que decidem, em deliberação mútua, incluir cláusula contratual que as vincule a seguir determinado procedimento antes de valerem-se da jurisdição estatal para solucionar eventual conflito.

Apesar da maior facilidade de adequação dos dispute boards aos contratos privados de construção civil e infraestrutura, não se tem notícia da utilização desse mecanismo contratual em empreendimentos do setor privado no Brasil. Em verdade, os comitês têm sido usados no Brasil em obras do Poder Público, sobretudo em contratos de concessão e de parceria público-privadas.

Quais as vantagens trazidas pelos dispute boards em termos de segurança nos contratos administrativos e na diminuição de riscos operacionais?

Lívia Moraes – Inicialmente, é possível que o painel do dispute board comece a atuar já no início do cumprimento do objeto do contrato, ou mesmo antes, a fim de serem dirimidas disputas em fase pré-contratual. Tal atuação é estratégica e tem a principal função de antever e de evitar numerosos conflitos.

            É interessante mencionar que existem estudos estatísticos apresentados pela Dispute Board Federation, de Genebra, pelos quais estima-se que a utilização do meio alternativo nos contratos de engenharia de grande porte prevenira cerca de 97,8% das disputas em arbitragens e tribunais, com tempo médio de 90 dias para resolução e custo de 2% do valor do projeto contra 8% a 10% das disputas arbitrais e judiciais.

As vantagens na utilização dos dispute boards passam pela condição do board já se encontrar permanentemente inteirado do contexto e do próprio objeto da disputa quando ela aflora, em face de seu exame prévio, sistemático e no local em que a relação entre as partes se estabelece. Muitas vezes ele presencia a própria gênese do conflito e, já na maioria das vezes, conhece de antemão a posição de cada uma das partes a respeito do que deve ser solucionado. Com isso, os disputes boards estabelecem uma redução temporal muito considerável para se chegar à superação do conflito.

Tendo-se em conta que em um dispute adjudication board a adjudicação é proferida em até 90 dias, de regra, e os procedimentos arbitrais perduram, em média, pouco menos de dois anos, o resultado é atingido em tempo sete vezes menor. A ausência de termos de comparação é tanto mais drástica em relação ao processo judicial. A possibilidade de atuação “real time” em relação ao conflito confere, de fato, uma condição privilegiada e muitíssimo mais eficiente em termos de apreciação dos fatos e provas. Tome-se como exemplo o conflito em uma obra. No caso de sua solução por arbitragem ou processo judicial estatal, uma perícia só teria lugar vários meses após a ocorrência do fato a ser analisado, quando muitas vezes até já se encontra inacessível, em face de concretagens havida sobre ele etc.

Que casos concretos de utilização dos dispute boards é possível citar?

Lívia Moraes- Existe um caso icônico no Brasil. A experiência do DB no Brasil é recente, destacando-se o caso da ampliação da Linha 4 Amarela do Metrô de São Paulo, no qual o Banco Interamericano para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) exigiu a presença de um DB para o acompanhamento da obra, cujo painel foi composto por três engenheiros.

A experiência foi um sucesso, e o DB custou aproximadamente 0,06% do valor da obra (orçada em 1,55 bilhão de dólares, aproximadamente). Conforme reportagem sobre a referida ampliação, o painel continuou sendo acionado por, pelo menos, mais quatro anos além da conclusão da obra, em virtude de disputas pendentes; contudo, os trabalhos não foram paralisados nenhuma vez.

Que orientações você daria a respeito do tema?

Lívia Moraes- O instrumento é um importante aliado da administração pública e dos particulares, especialmente em contratos de infraestrutura, com grandiosos vultos financeiros envolvidos, podendo prevenir ou solucionar controvérsias ao longo e depois da execução contratual, notadamente quanto aos aspectos técnicos e de difícil compreensão à luz exclusiva de normas jurídicas.

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