Sobre homofobia, presunção de inocência e o perigo da liquidez do Direito Penal

Por Thales de Andrade

Nesta quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019, o Supremo Tribunal Federal deverá concluir o julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733, cujos relatores são os ministros Celso de Mello e Edson Fachin, respectivamente.

O cerne do julgamento gira em torno de suposta omissão do Congresso Nacional em virtude da não elaboração de legislação criminal que estabeleça punição pela homofobia e transfobia que, para os autores da ação, são condutas que podem ser enquadradas no conceito de racismo, este tipificado como crime na Lei 7.716/89.

Embora simpatizante à causa LGBT+ e reconhecendo o verdadeiro espaço vazio de direitos no qual as pessoas integrantes de tais grupos vulneráveis se encontram, penso que é bastante perigoso e inseguro que se estenda o conceito de racismo para contemplar tais condutas.

Se a extensão do alcance do crime de racismo já teria duvidosa constitucionalidade mesmo se efetivada pelas vias ordinárias, isto é, no trâmite natural do processo legislativo no Congresso Nacional, a desconformidade constitucional e a insegurança jurídica se mostram ainda mais patentes quando se objetiva fazê-la pela via da interpretação judicial.

Antes de entrar em pormenores justificativos da minha opinião, não posso deixar de notar, contudo, que o mencionado julgado reflete uma perigosa tendência do sistema judicial brasileiro, no qual se percebe um crescendo ativismo judicial marcado pela relativização de conceitos e garantias penais que, outrora rígidos, ganham mais fluidez e flexibilidade, cedendo a clamores sociais com o objetivo de tentar conter a insatisfação popular diante da falência de medidas de cunho político-administrativo, como a questão do combate à violência urbana.

Um dos momentos-chave de legitimação popular desse modelo de ampla atuação judicial, foi a relativização do conceito de presunção de inocência, no ano de 2016 pelo STF, onde a execução provisória de pena, após a condenação em segunda instância, passou a ser considerada como sendo constitucional e não violando o axioma pelo qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

Ou seja, em virtude da excessiva impunidade e da incapacidade do Estado de combater a violência de forma efetiva pelas vias administrativas, mudou-se o conceito de “trânsito em julgado”, historicamente compreendido como o esgotamento das vias recursais, logo, fim do processo, como se bastasse uma canetada para refazer toda uma construção histórica, fruto de sangrentas lutas populares no mundo inteiro.

Mas, nesse momento, no entanto, o caro leitor pode estar a se perguntar: qual a relação entre a criminalização da homofobia – defendida historicamente por grupos majoritariamente de esquerda – e a relativização da presunção de inocência com a antecipação da execução da pena, pauta tradicionalmente ligada à direita?

Pois bem. O denominador comum a ambos os julgados é um só: o maior poder do julgador, pela via interpretativa, na definição, para mais ou para menos, do conteúdo outrora intangível de direitos e garantias fundamentais de natureza penal. E essa intangibilidade de conceitos fundamentais penais deriva da ideia de “reserva legal”, base do sistema democrático.

Nos Estados absolutistas, as punições efetivadas pelo soberano eram aplicadas ao seu bel prazer e conforme a sua vontade pessoal, dado que, àquela época, eram os reis considerados como sendo a voz divina na terra. Na passagem para a modernidade, a pedra fundamental dos sistemas democráticos passa a ser a de que somente pode o Estado invadir a esfera individual se houver uma previsão legal para tanto.

Em se tratando de norma penal, cuja consequência de sua aplicação é a limitação da liberdade do indivíduo – direito fundamental de primeira dimensão, essa ideia de legalidade necessita de uma rigidez que a deixe acima de quaisquer flutuações políticas e clamores sociais de momento, de modo a significar que, mesmo nas situações políticas e sociais mais extremas, o indivíduo não terá a sua liberdade limitada pelo Estado, se não houver previsão (“Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”).

A legalidade penal é, portanto, acima de tudo, um escudo que o indivíduo passa a ter contra o ilimitado arbítrio do Estado que venha a vilipendiar a sua liberdade pessoal. E assim vem sendo (ou se tentando que seja), desde a criação do conceito, em 1764 pelo italiano Cesare Beccaria.

É por essa razão, para impedir que o Estado passe a querer interferir excessivamente na autonomia privada do indivíduo, passando a tudo criminalizar e limitar, que os conceitos penais são, desde a sua elaboração, interpretados de forma limitada e restrita, inclusive proibindo-se analogias desfavoráveis aos réus, se não previstas literal e previamente na norma (é a clássica noção de proibição da analogia in malam partem).

Isso posto, não se pode perder de vista que, pela própria forma de investidura dos seus magistrados, o Supremo Tribunal Federal é também um tribunal político. E, quando passa gradativamente a outorgar para si o poder de definir o que é ou não crime, o que é ou não garantia processual penal, passa-se a submeter o alicerce do jurídico ao político, política que é fluida e muda conforme cada momento (por exemplo, há cinco anos atrás, Dilma Rousseff e Aécio Neves tinham mais de 50 milhões de votos!).

Considerando-se o histórico de abusos da história do Brasil, onde o que é exceção passa gradativa e silenciosamente a virar regra, é extremamente inseguro que se outorgue à interpretação judicial a possibilidade de modificação de tais conceitos penais, pois, em última linha, e levando-se em conta o atual contexto de ebulição política, corre-se o risco de que o sistema penal passe a ser tão fluido e fique à mercê dos julgadores que deixe de ser guiado por critérios jurídico-protetores, para passar a ser guiado por critérios políticos.

Por conta disso, penso que não é viável que a criminalização da homofobia e a inclusão dessa forma de discriminação como integrante do conceito de racismo, seja operada pela via da interpretação judicial, tal qual penso ser inviável o atual entendimento do STF no sentido de entender que o sujeito já pode passar a cumprir a sua pena, antes do fim do processo, em virtude do literal obstáculo constitucional para tanto.

É necessário, nesse momento, uma análise desapaixonada de tais questões, pois, ainda que ora a decisão do tribunal cative o pensamento de direita, ora cative o pensamento de esquerda, numa democracia não pode existir o poder de dizer o que a lei não diz! Corre-se, hoje, o risco de surgimento de uma nova forma de absolutismo em plena pós-modernidade: o “absolutismo judicial”, cuja máxima não é mais a de Luís XIV, que afirmava “o Estado sou eu”, passando a ser a do julgador solipsista, cuja máxima é “o Direito sou eu”.

Thales de Andrade é Advogado Criminalista, professor de Direito Penal e Processual Penal, mestre em Direito e Instituições de Sistema da Justiça pela Universidade Federal do Maranhão, Coordenador da Faculdade de Direito do Instituto Florence de Ensino Superior/MA, coordenador-adjunto, no Maranhão, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)

 

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