Eu não mereço ser estuprado por nossos deputados!

Por Edson Travassos Vidigal*

Há um tempo atrás, foi divulgada uma infeliz pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), na qual 65,1% de quase 4 mil entrevistados responderam que mulheres que mostram o corpo “merecem ser atacadas”, e outros 58,5% dos entrevistados concordaram com a frase “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.

Independente do IPEA, quando criticamos nossos (pseudo)representantes eleitos, nossos pUderosos de plantão, logo nos soltam uma outra pérola da sapiência popular, já surrada pelo uso constante: “cada povo tem os governantes que merece”. Tal frase é usada à exaustão por aqueles acomodados com nossa situação de degeneração política vigente, aqueles que preferem se esquivar de suas responsabilidades e culpar o ente abstrato “povo” pelas mazelas que vivemos, ao invés de se esforçarem em fazer por merecer viver em uma sociedade digna, livre de pUderosos e de outras espécies de mazelas sociais.

Na verdade, essa frase, atribuída ao filósofo francês Joseph-Marie Maistre (1753-1821) , monarquista convicto e crítico fervoroso da Revolução Francesa, teria sido “pinçada” de uma carta escrita em 1811, e publicada 40 anos mais tarde. A citação faz referência à ignorância do povo, que na visão do autor seria a responsável pela escolha dos maus representantes. Contrário a participação do povo nos processos políticos, o filósofo francês pregava que os desmandos de um governo cabiam como uma punição àqueles que tinham direito ao voto, mas não sabiam usá-lo.

Pois bem, não obstante todos os seus problemas, como bem disse Winston Churchill , “a democracia é a pior de todas as formas de governo, excetuando-se as demais”. Tá certo que esse mesmo cara também disse “eu aproveitei mais o álcool do que ele se aproveitou de mim”, mas isso não é motivo suficiente pra desmerecer todo o seu pensamento, não é verdade?

O fato é que a democracia, o tal do governo do povo, por mais que pouquíssimas almas vivas tenham ciência disso, é um mecanismo que visa evitar a concentração de poderes nas mãos de um ou alguns indivíduos, justamente criando um caos político tal que crie uma perpétua instabilidade do poder político, assim enfraquecendo cada um dos jogadores desse jogo, por meio dos demais. Ou seja, jogam-se os pUderosos uns contra os outros, para que eles próprios se enfraqueçam e, no fim, saiam ganhando com isso os indivíduos, que ficarão um pouco menos fracos em relação a seus governantes e seus abusos, assim acabando por se constituírem, também, em força política, fazendo parte do jogo.

Entretanto, um outro vetor tem que ser levado em consideração: O PODER ECONÔMICO. Este poder, caso não seja limitado por nossas instituições democráticas, acaba por subjugar todos os jogadores enfraquecidos dessa guerra chamada democracia. Principalmente o mais fraco de todos – o povo.

Assim, até aproveitando-se do caos político, da desejável instabilidade do poder político, o poder econômico domina a política, a população, os países, a democracia, o constitucionalismo, o direito, enfim, todas os mecanismos que deveriam nos proteger de abusos. E é o que temos visto diariamente nos jornais. As empresas dominando nossa agenda política, decidindo nossas eleições, conduzindo nossa economia, nossas políticas públicas, nossos deputados, nossos governantes, até mesmo nossos juízes, e, por fim, nossas vidas.

Se o tal do “povo” (que ninguém sabe ao certo o quê ou quem é) não está preparado para votar, por que então é obrigado a fazê-lo? Sem educação, sem cultura, sem nem ao menos ter o mínimo de dignidade para viver, como alguém pode estar preparado para decidir sobre o futuro de um país? Como alguém pode parar pra pensar sobre o futuro, sem nem ao menos ter certeza do presente? É claro que alguém que depende de sobreviver a cada dia sempre será imediatista, irresponsável em relação ao futuro, em relação aos demais membros da coletividade. Como diz o ditado popular, “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”.

O fato é que, claro, o “povo”, não está preparado para votar, e quem diz o contrário, desculpe-me, mas ou é hipócrita, ou alienado total. E claro, quando digo isso, não estou chamando de povo uma classe social específica, ou um grupo específico de pessoas. Na verdade, o “povo” é um ente abstrato que representa todos nós. Eu sou o povo, você é o povo. O povo é uma abstração jurídica que deve tomar as decisões, que deve exercer o poder político de nosso Estado. Na medida em que o exercemos, em que exercemos nossa cidadania, cumprimos com nosso papel de “povo”. Quando não, o “povo” fica vazio.

E é o que está acontecendo. O “povo”, este ente abstrato, está vazio. Esvaziado propositalmente por uma corja de políticos que, temendo a instabilidade política da democracia, resolveu se aliar ao poder econômico para se perpetuar no poder. Esse esvaziamento do “povo” é doloso, e causado por nossos próprios governantes. Eu faço diariamente a minha parte enquanto “povo”, enquanto cidadão. Não sou culpado dessa pouca vergonha que está sendo nossa política. Não tenho que ser punido sofrendo os desmandos de nossos governantes. Esta reforma política tem sido uma violência extrema contra nossa inteligência e nossa dignidade. Na boa, ao contrário do que possam dizer os hipócritas, EU NÃO MEREÇO SER ESTUPRADO POR NOSSOS DEPUTADOS!

* Edson José Travassos Vidigal foi candidato a deputado estadual nas últimas eleições e por convicção política, de forma intransigente, não aceitou doações de empresas. É advogado membro da Comissão de Assuntos Legislativos da OAB-DF, professor universitário de Direito e Filosofia, músico e escritor. Especialista em Direito Eleitoral e Filosofia Política, foi servidor concursado do TSE por 19 anos. Assina a coluna A CIDADE NÃO PARA, publicada no JORNAL PEQUENO todas as segundas-feiras.

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